Esse texto é de autoria de Fauno, do canal História & Games

Um Mergulho Arqueológico nos Segredos da Boêmia Medieval
INTRODUÇÃO: O REALISMO COMO REVOLUÇÃO (E DILEMA)
Em um universo dominado por elfos e feitiçarias, Kingdom Come: Deliverance II ousa questionar: e se a verdadeira magia estiver… na História? Este não é apenas um jogo – é uma escavação digital do século XV, onde cada pedra, cada diálogo, cada foice enferrujada foi lapidada com base em crônicas, pinturas e até inventários reais. Mas aqui está o dilema: como ser fiel à História sem sacrificar a diversão? Prepare-se para uma jornada onde cada frame esconde um documento histórico – e algumas licenças criativas necessárias. Spoiler: até os cronistas medievais mentiam. Mas será que viver neste século XV hardcore é tão autêntico quanto parece? A resposta envolve… mineiros escravizados, banhos proibidos, e um plebeu que desafia reis. Aperte o cinto da armadura – a verdade vai doer mais que uma espada Hussita!
CAPÍTULO 1: BOÊMIA – O TABULEIRO DE XADREZ EUROPEU
Em 1403, enquanto a França sangrava na Guerra dos Cem Anos, a Boêmia vivia seu próprio inferno dourado. Kutná Hora, a cidade de prata, era o epicentro de uma rede econômica que financiava reinos – e guerras. Com 2 toneladas de prata extraídas anualmente, esta era a “Wall Street” medieval, onde mercadores alemães, ourives italianos e nobres tchecos dançavam uma valsa de interesses.
Mas a riqueza tinha seu preço: documentos do Mosteiro de Sedlec revelam que mineiros trabalhavam em turnos de 12 horas, com expectativa de vida de apenas 32 anos – detalhe sombrio que o jogo retrata nas missões subterrâneas, onde o ar pesado e a escuridão claustrofóbica nos lembram: cada moeda cunhada tinha sangue em sua liga.
Repare nos ‘groš praguenses’ – moedas que circularam da Inglaterra à Rússia. A Warhorse não só replicou seu design (cruz cristã e leão boêmio), mas até seu valor de compra: com 10 groš, Henry aluga um cavalo por dia… exatamente como em contratos de 1410 achados em Praga.
CAPÍTULO 2: KUTTENBERG – A CIDADE QUE FINANCIOU IMPÉRIOS
Kuttenberg não era apenas uma cidade – era uma máquina de cunhar poder. Suas minas de prata, descritas no Liber monetarum (1385) como ‘veias abertas da Terra’, geravam 30% da prata europeia no auge do século XV. Mas essa riqueza tinha um custo humano:
- Trabalho Escravo: Registros do Mosteiro de São Francisco em Praga mencionam ‘homens acorrentados pela dívida’ forçados a descer a 200m de profundidade.
- Tecnologia Mortal: Os poços de ventilação usavam foles de couro – eficazes até um incêndio em 1412 matar 150 mineiros, evento recriado numa missão secundária do jogo.
A Warhorse Studios não poupou detalhes: até o sistema de drenagem das minas no jogo replica os ‘adits’ (túneis inclinados) descritos no tratado De re metallica (1556). Mas há uma licença criativa crucial: os NPCs reclamam de ‘gases venenosos’, quando na verdade, os medievais atribuíam acidentes a demônios subterrâneos (Bergmönche), como relatado no Malleus Maleficarum.
Já o Ossuário de Sedlec esconde uma ironia histórica: seus 40.000 ossos foram rearrumados em 1870 pelo entalhador František Rint… mas o jogo os mostra como em 1403! Por quê? Porque a Warhorse quis capturar o terror pós-Peste Negra (1347-1351), quando pilhas de esqueletos simplesmente existiam à céu aberto. Uma liberdade justificada por crônicas como a de Petr Chelčický, que descreve ‘montes de mortos como lenha seca’ após a guerra civil de 1420.
CAPÍTULO 3: TROSKY E APOLENA – FORTALEZAS, FÚRIA E FOLCLORE
O Castelo Trosky não era uma fortaleza – era um símbolo psicológico. Suas torres gêmeas (‘Panna’ e ‘Baba’) eram inúteis militarmente (posicionadas em picos inacessíveis), mas serviam como propaganda stone para intimidar invasores. Um manuscrito de 1394 do nobre Čeněk de Vartenberk orgulha-se: ‘Até os cegos sabem que Trosky é inexpugnável’.
No jogo, essa lenda vira gameplay subversivo: para invadir Trosky, Henry usa táticas descritas no Bellifortis (1405), como:
- Escalada noturna com ganchos de ferro (improvável, mas baseado em esboços de Kyeser)
- Sabotagem de reservas de água (método usado pelos Hussitas em 1424)
- Infiltração disfarçado de mercador (tática real de espiões boêmios, como revelam cartas de Sigismundo Korybut)
A Warhorse até incluiu animais extintos: lobos-da-boêmia (desaparecidos no século XVIII) aparecem como inimigos – uma homenagem ao Livro da Caça de Wenceslau IV (1400), que os descreve como ‘demônios peludos’.
CAPÍTULO 4: HENRIQUE – O PLEBEU QUE DESAFIOU A HISTÓRIA
A ascensão de Henry é quase impossível. Quase. Porque a Boêmia do século XV foi um caldeirão de exceções:
- Mobilidade Social Via Guerra: O Codex Diplomaticus registra casos como Jakoubek de Vřesová, ferreiro que virou capitão Hussita em 1427.
- Treinamento ‘Fast-Track’: Nobres como Radzig Kobyla (baseado em Jan Sokol de Lamberk) recrutavam plebeus talentosos em crises, conforme cartas de Venceslau IV descobertas em 1998.
Mas a Warhorse exagera um ponto: o domínio de Henry com espadas longas. Manuais como o Fechtbuch de Talhoffer (1467) mostram que dominar técnicas como o ‘Krumphau’ exigia 10+ anos de treino – não algumas lições. A solução do jogo? Um sistema de skill que faz Henry treinar 8h no jogo = 1 ano real. Genialidade lúdica disfarçando realismo cruel.
Note a alabarda: arma preferida dos plebeus, descrita pelo cronista Enea Silvio Piccolomini como ‘o demônio em um cabo de madeira’. No jogo, seu golpe de giro (‘Rundhau’) replica ilustrações do MSS 862 (1389), mas com um twist: a física calcula centro de massa, fazendo Henry tropeçar se mal posicionado – detalhe inexistente até em RPGs ‘realistas’.
CAPÍTULO 5: COTIDIANO – A VIDA ALÉM DA GUERRA
Enquanto a espada de Henry pende sobre a guerra, é nas entranhas do cotidiano que Kingdom Come 2 revela sua alma histórica. Vamos desvendar três pilares dessa simulação social:
1. Banhos Termais: Higiene e Hedonismo
Ao contrário do estereótipo de ‘sujos medievais’, os banhos públicos eram centros sociais vibrantes até meados do século XV. Em Praga, registros do Mosteiro de Strahov descrevem casas de banho com piscinas aquecidas por lenha, onde nobres discutiam política e camponeses curavam dores musculares. Tudo mudou com a Peste Negra: o Édito de Ratisbona (1431) restringiu banhos coletivos, alegando que ‘águas mornas abriam os poros ao miasma pestilento’. No jogo, essa transição é sutil: enquanto nas tavernas de Rattay ainda se vêem cubas de madeira, os NPCs comentam que ‘banhos prolongados enfraquecem o espírito’ – um eco fiel do pânico pós-peste.
2. Dieta Medieval: Pão, Cerveja e… Mais Pão
Aqui, até a fome é educativa. A dieta boêmia do século XV seguia a regra 70/20/10:
- 70% pão (de centeio ou cevada, tão duro que era mergulhado em cerveja para amolecer)
- 20% carne (porco salgado no inverno, frango assado em festas – bovinos eram raros, pois puxavam arados)
- 10% cerveja (fermentada com gruit, uma mistura de ervas antes do lúpulo ser popularizado)
O jogo traduz isso em mecânicas cruéis: ignorar a nutrição causa fraqueza (-20% de força) ou obesidade (penalidade em agilidade), replicando estudos do Instituto Arqueológico de Brno sobre desnutrição crônica em esqueletos medievais.
3. Festas Religiosas: O TikTok da Idade Média
A ‘Missão do Festival da Colheita’ não é ficção: baseia-se no Ludus Magnus de Praga, um evento descrito em diários do mercador Ulrich von Rosenberg (1405-1462) como ‘três dias de cerveja fluindo mais que o rio Vltava’. O jogo captura a dualidade sagrada-profana: enquanto padres benzem os campos, jogos de azar e competições de arco acontecem nos fundos – uma licença poética com base em sermões da época que reclamavam da ‘devassidão nas festas de santos’.
4. A Realidade Suavizada: Entre o Didático e o Sombrio
A Warhorse enfrenta aqui seu dilema moral: como retratar violência doméstica ou direito feudal de pernada sem traumatizar jogadores? A solução foi a insinuação: em uma missão secundária, Henry ouve gritos em uma cabana, mas ao intervir, encontra apenas uma discussão conjugal. Já o abuso senhorial é sugerido via diálogos como ‘O conde levou minha filha… para servir em seu castelo’, deixando a interpretação ao jogador. Uma escolha respaldada por historiadores como Dr. Karel Černý (Universidade Carolina), que nota: ‘A violência era cotidiana, mas raramente explícita em registros – até os escribas medievais tinham seus limites.’
CONCLUSÃO: QUANDO O PASSADO GANHA POLÍGONOS
Kingdom Come 2 é uma máquina do tempo com controles. Cada glitch na armadura, cada diálogo em Old Czech aproxima-nos de uma era onde heroísmo não vinha de magia, mas de resistência humana. Claro, licenças foram tomadas – mas como disse o historiador Petr Čornej: ‘Até os cronistas medievais inventavam diálogos. A verdade está no espírito, não nas palavras exatas.’
Mas aqui está a provocação final: quanta ‘História’ um jogo precisa ter para ser autêntico? Recriar espadas? Sim. Retratar a angústia de um ferreiro que vira soldado? Absolutamente. Mas talvez a maior lição seja que… a Idade Média não precisa de dragões para ser fascinante – ela já foi um inferno (e um paraíso) suficientemente complexo por si só.